sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Tratamos bem nossa casa mas nos lixamos para a sujeira das ruas

Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1997

Roberto DaMatta já declarou certa feita que era uma honra ser comparado ao grande antropólogo Gilberto Freyre, mesmo que por um viés de direita. E, de certa forma, homenageia Casa Grande & senzala, não apenas pela inclusão deste & comercial, mas na própria utilização do contraponto do público e do privado para o desvendamento da cultura brasileira. Se a rua é o espaço público da batalha do cotidiano, da dureza do trabalho, a casa é o espaço do aconchego familiar e do reino relacional predominante na cultura do país. Fenômenos corriqueiros como os de fechar ruas com portões engradados, alegando razões de segurança, ocupar a calçada como extensão de seu negócio ou transigir nos maus costumes políticos da impunidade, nepotismo e fisiologismo, são manifestações de desapreço pela própria liberdade do outro e do atravessamento da vida política, que deve ser essencialmente pública, pela vida privada e parental. Tratamos tão bem de nossa casa assim como nos lixamos para a degradação e sujeira das ruas, que afinal são problemas dos governos. Espaços que engendram dois códigos sociais totalmente opostos: se as relações de casa são fundadas na família, na amizade, na pessoa, na lealdade e no compadrio, o código da rua é fundado no distanciamento das leis universais, na burocracia, no formalismo jurídico-legal e no abuso de poder autoritário.

O texto destes quatro grandes ensaios sobre o Brasil é rico de comparativos entre costumes brasileiros de origem ibérica e os americanos de matriz saxã. Mas o mais eloqüente deles é o que diz respeito a própria escolha do centro urbano a partir do qual de diverge e converge a cidade. Nova York, por exemplo, é fundada a partir de um porto, comércio e bolsa de mercadorias e valores, como Wall Street, ao passo que capitais brasileiras como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e, não se espantem, até mesmo Brasília, são fundadas em torno do Paço, tendo geralmente à esquerda a sede da igreja e à direita, o comércio. O que me parece sintomático, no entanto, é a ausência de relevância à calçada, equipamento urbano surgido como marca da própria cidade moderna na reurbanização de Paris do século XVIII e XIX, divisor mais do que evidente entre a rua pública e a casa privada, espaço de defesa e afirmação de direitos civis dos próprios cidadãos, que, no Brasil, invadido, desrespeitado e privatizado, é o espaço demarcatório e significante do nosso próprio déficit de cidadania. Cidadania, aliás, que é o tema central do livro e tratado numa cultura relacional, o que causa o próprio desvio de entendimento e variação conceitual do termo. Quando DaMatta retoma de certa forma os conceitos fundamentais de Carnavais, malandros e heróis: a distinção entre indivíduo e pessoa, traduzida na conhecida e ameaçadora pergunta: Você sabe com quem está falando? Quando seres humanos que se sentem autorizados a se dirigir dessa forma aos outros, colocam-se na posição de pessoas: são titulares de direito, são alguém no contexto social. Cidadãos por exclusão dos demais, meros indivíduos, mais um na multidão, um número apenas. Se a rua é o espaço público, como é de todos, não é de ninguém; logo, tem-se ali um espaço hostil onde não valem as leis e os princípios éticos, a não ser sob a vigilância da autoridade. A convivência na rua depende de uma negociação constante, entre iguais e desiguais. A casa, considerada num sentido amplo, é o espaço privado por excelência, onde estão “os nossos” , que devem ser protegidos e favorecidos, aqui a retomada do conceito de homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda.

Outra eloquente diferenciação didática entre a cultura política e civil americana e brasileira é o que diz respeito ao sistema das próprias relações sociais, quando a prevalência da figura feminina reafirma o sistema relacional, de agregar e conciliar, ao contrário do americano, onde a marca masculina impõe a exclusão e separação. Se neste credo a ordem é iguais mas separados, no brasileiro é diferentes, mas juntos. Se lá o individuo é o sujeito do sistema, aqui teremos a própria relação como principal ator social. No ensaio sobre a mulher, DaMatta nos extrai das personagens femininas de Jorge Amado uma teoria sobre o Brasil, o que reafirma mais uma vez a omissão da figura do pai na vida da casa e a demagogia dos governantes que se fingem prestar a este papel em prejuizo da figura imprescindivel do juiz, sua verdadeira missão. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário